terça-feira, 6 de agosto de 2013

               O Tempo do Cativeiro
O Tempo do Cativeiro
As narrativas sobre o tempo do cativeiro se constróem a partir da rememoração
de casos e histórias que os depoentes ouviram contar dos pais e avós. Nem sempre
estas histórias dizem respeito diretamente a experiências dos próprios contadores
originais (pais ou avós), mas falam antes de narrativas transmitidas de pai para filho
por serem conhecidas ou por ouvir dizer. Constróem de maneira coerente uma
memória coletiva sobre os significados da experiência da escravidão associada às
idéias de violência, torturas, maus tratos e animalização, bem como ao poder senhorial
e a seu arbítrio, para fazer o bem ou o mal. É a partir dessa representação genérica do
tempo do cativeiro que se organizarão os recursos de periodização nas narrativas
consideradas, emprestando significados precisos ao “tempo do cativeiro” e permitindo
aos depoentes refletirem criticamente sobre as suas continuidades e descontinuidades
com o tempo atual.
***
Meu pai foi do tempo da escravidão. Era duro o tempo da escravidão. Tinha
os administradores que tomavam conta deles. Era ruim principalmente para essa
mulherada que era escrava também. Diz que elas apanhavam lá. Surravam eles
todos, mas meu pai dizia que obrigavam elas a casarem com qualquer um. Acho que
era isso que minha tia falava, que era custoso o casamento pra elas lá . Esses
administradores eram muito ruins.
Eles apanhavam à toa, à toa, à toa, de ruindade mesmo, surravam. Faziam a
comida na gamela. A comida era toda na gamela. Aquela comida grosseira que eles
comiam. Ali era tudo ali na gamela. Diz que o feitor era ruim! O feitor que mandava
neles. Quem judiava dos escravos era o feitor. Sempre o feitor. O patrão mandava
tomar conta, ele fazia o que queria com.os coitados. Até a mulherada apanhava!
Mas agora vou te contar, em Tietê...tinha uma mulher que se chamava Nhá
Aninha. Ana. Ela era de Piracicaba, sabe? E tinha escravo. Ih! essa mulher pintava
com os escravos! Ela era ruim!
Mas eu estou contando...que eu conheço ainda lá a casa onde ela morava. Ela
gritava, gritava, gritava... O que Nhá Aninha fazia! Se pegava como diz ...até que
por fim do remato... ela criou rabo! Eu estou contando. Ela criou rabo!. O apelido
dela era Aninha Braba. E não é que uma vez ela jogou um caldeirão de gordura
quente num rapazinho? E o rapazinho morreu.
Diz que quando ela ficou ruim ela gritava: “Tira esse negrinho daqui! Eu não
quero ver esse negrinho! Tira o negrinho daqui!” E ela ficou ruim, criou rabo,
arrumaram uma cadeira de braço, grande assim (a depoente move os braços para dar
uma idéia do tamanho da cadeira), fizeram um buraco no meio. Ela não andava. Eles
punham ela sentada e uma das empregadas pegava aqui e a outra lá (uma de cada
lado da cadeira) pra levar ela na casa da gente rica que era conhecida dela. Seu
nome era Maria Silvia Paes de Andrade. Levavam ela na cadeira. E depois ela
morreu. E mesmo assim ainda gritava lá no cemitério para levar a corda pra ela,
corda pra enforcar os escravos. (Isabel Fabiano André, SP, 93 anos, 18/10/1987)
****
Não foi só negro que foi escravo, é que o negro foi a maior parte e era lei do
país que se podia comprar as pessoas. Então, aquele que ele comprou era um
escravo. Eu tinha uma tia, ela contava que a avó dela, veio de Cuiabá no comboio.
Você sabe o que é comboio? É a mesma coisa de dizer um lote, um bando, é aquele
mundo de negro, de todo tamanho, viu? O que prestasse pra andar fazia aquele
comboio. Vinham pelas estradas a pé. E aí, quando o comboio chegava lá, tinha
leilão de escravo. Tinha leilão, avisavam todos os fazendeiros da região. Aqueles
fazendeiro todos arrumavam dinheiro e falavam: “hoje tem leilão”. Ele ia lá e era
leiloado aquele escravo. Se era moço de dezoito anos ou uma rapariga de dezoito,
dezesseis, era mais caro. Se tinha doze, quatorze, era mais barato. Se era velho, um
 
escravo que era ruim, que não era grande coisa pra trabalhar, esse era mais barato.
Era assim. E eles preferiam sempre comprar aqueles de dezoito, vinte, ou meio
moço.
Teve um fazendeiro que comprou um moço que chamava Lourenço. E
quando ele trouxe em casa o Lourenço falou assim pra ele: “Vamos ver sua língua!”
“Tira a língua pra fora que eu quero ver sua língua.” Aí o Lourenço tirou a língua
pra fora, ele pegou um ferro quente e...disse: “você tem jeito de ser linguarudo”, e
queimou a língua dele com ferro quente! Foi a primeira judiação. Era pra dar
exemplo pros outros. Pra dar exemplo pros outros. Esse que queimou a língua não
era meu parente, mas a gente sabe a história dos senhores. Sabe, o nosso pai
contava, os avôs contavam histórias de um senhor, de outro. Tinha o que era bom,
tinha o que era ruim... E eles contavam pra nós, pra netaiada. (Benedita, SP, 80 anos,
15/08 e 16/08/1987)
***
A minha avó foi escrava. A minha mãe nasceu um ano depois do cativeiro.
Minha avó contava que eles foram muito judiados, apanhavam muito, que a
“escravidão” tinha tirado o coro das costas deles.
Os escravos não sabiam idade. Mas ela não morreu muito velha não, porque
ela era lúcida e contava o que eles passavam no cativeiro, os flagelos. Eu ouvi dizer
que tinha tronco. Só que ela dizia que nunca foi no tronco, mas que os outros iam.
Nesse território aqui tudo foi trabalhado, foi feito pelos escravos. Naquele tempo o
trem era feio. Se não trabalhava, apanhava, morria até, porque os outros batiam
mesmo. Ouvi falar muito isso. (M.L.F., ES, nascida em 1916, não consta a data da
entrevista)
***
Ah, mamãe contava muito caso do tempo do cativeiro. Lá em Petrópolis, na
fazenda em que ela foi criada, nascida e criada, chamada fazenda do Grão-Pará,
tinha um fazendeiro que era muito ruim. Ele tinha um esteio assim dessa grossura.
Quando o nego errava, ele botava ele ali, na roda de açoite. Aqui... quando ele
gritava, um coro vinha de lá, batia aqui. O outro coro vinha de cá, batia aqui.




 Quando tirava o nego dali, estava todo retalhado. . (C.M.S., E.S., 75 anos,
04/07/1995)
***
Meu avô falava muito sobre aquele negócio de bater nos negros. A roda de
chicote que corria aqui. Um dia ele estava mostrando um toco de porteira desse
tamanho assim. Então ele falou que debaixo daquele tronco de porteira tinha um
negro enterrado. Ele disse que o patrão, o chefe, quando tomava raiva do cara,
levava o cara pra lá sem saber de nada e mandava ele furar um buraco pra colocar
um batente de porteira. Quando o buraco tava fundo, aquele buracão assim, aí diz
que ele mandava o cara ir lá embaixo, jogando a terra pra cima e aí ele mandava
jogar o esteio de porteira em cima dele. Jogava aquele esteio de porteira em cima
dele lá, aquele toco de braúna desse tamanho, dessa grossura assim, e socava, ali,
botava e falava: “Ó, se vocês falarem vocês vão morrer também”. Diz que ninguém
falava. Meu avô contava que aqui debaixo dessa porteira tem um crioulo morto,
enterrado aqui. E que logo pra baixo tem um riozinho que desce e uma basezinha de
pedra onde ficava a senzala e o lugar de bater nos negros. (A.D.C., ES)
***
Agora tem mais outros casos de escravidão que aconteceu aqui em Cunha.
Meu pai contava de um escravo com nome de Israel. Esse é outro causo. Um
escravo com nome de Israel. Ele tinha o sinhô, o patrão dele que era o Manuel
Antônio. Muito severo, muito ruim, homem cruel, triste! Era daqui de Cunha, aliás a
fazenda mais bonita que existe no município de Cunha era desse homem. Manuel
Antônio. Ele era um patrão que castigava mesmo por gostar. Dizem que ele
experimentava espingarda atirando numa criancinha em cima dum cupinzeiro, em
cima duma cerca, atirava pra experimentar a espingarda. Dizem isso. E esse Israel
foi vendido para ele. Dona Geralda vendeu os escravo pro Manoel Antônio. Manoel
Antônio comprou os escravos porque era uma dívida que ela devia e no meio desses
escravos foi o tal Israel.
Esse o meu pai conheceu na prisão. Um dia que o capataz foi buscar os
pretos para dar uma bordoada na cabeça, porque era a moda que o tal Manuel
Antônio mandava eles fazer, ele mandava prender num paiol grande de milho e dar



 uma bordoada na cabeça, aí o escravo caía e ele amarrava. Então, quando foi na vez
do Israel, o capataz deu a bordoada e o Israel caiu, mas o capataz não sabia que ele
estava com uma peixeira por baixo da camisa. Então, quando o Israel caiu e ele
montou em cima do escravo pra amarrar, o Israel cutucou na boca do estômago e
matou o capataz. Ele morreu em cima do escravo. Deu uma confusão medonha, meu
pai contou. Agora depois prenderam o Israel na cadeia. Ele morreu com bicho na
cabeça, porque nesse tempo não cuidavam dos preso. Deu um corte na cabeça dele
com a bordoada que deram...
Mas no meio deles existia também senhor de escravo que era bom, como o
sinhozinho, marido de Dona Geralda, fazendeiro rico, milionário, gente bem de vida.
Esse dizia: “meus filhos vem vindo”. Aliás tem um outro causo inteiro, do dia que
um pessoalzinho, o promotor, o delegado assim, as autoridades, foram almoçar
nessa fazenda, na fazenda do sinhozinho.
Lá chegando, eles puseram a mesa, mas não arrumaram a comida, e o
sinhozinho dizia: “meus filhos estão demorando!” e eles pensavam, o pessoal das
autoridades pensava que “meus filhos” eram os filhos mesmo dele. Então lá de
longe, ele apontou os pretos cantando que vinham do eito. Os pretos cantando e ele
falou: “Ah! Então põe a janta na mesa porque meus filhos estão chegando”. Os
filhos dele eram os escravos. Ele tinha como filhos os escravos, porque os escravos
ajudavam a vida dele. Ajudavam ele a ganhar o dinheiro, ajudavam em tudo, então
ele tinha como filho.
É aonde eu digo que eles eram bons e eram ruins, tinha gente boa e tinha
gente ruim no meio, sabe?
Mas a verdade é que é doido a gente ver um ser humano castigado e jogado
pro porco comer como existiu aqui em Cunha. Tratado como animal. Os escravos
eram tratados como animal. Tem até um ditado que diz que o preto que tinha canela
fina era bom pra trabalhar, o preto da canela grossa não prestava pra trabalhar. Esses
eles matavam e não tinha crime. A escravidão não pode ser boa não. Era um
sofrimento pro povo. Um ser humano sofrendo uma injustiça daquela. Porque todo
mundo é filho de Deus, preto ou branco, amarelo, tudo é filho de Deus. E nesse
tempo não, preto não valia nada, era tratado como bicho. Preto era tratado como




 O Tempo do Cativeiro 6
animal, bicho e sendo que ele é filho de Deus também, não é? (José Veloso
Sobrinho, SP, 70 anos, 16/07/1987)
***
Os negros do mato
Na tradição familiar aqui considerada, a fuga, apesar de compor, lado a
lado com o arbítrio senhorial, o quadro mais genérico do tempo do cativeiro,
apresenta-se como recurso de desespero ou de irresponsabilidade, com custo
altíssimo para quem a ele recorresse. Das punições mais cruéis ao serem
recapturados ao total desenraizamento dos negros do mato transformados em
caiporas. Os negros do mato – quase tão estrangeiros e ameaçadores quanto os
africanos – diferentemente destes não conseguiam levar a melhor sobre a
crueldade dos senhores, na visão dos nossos narradores.
***
Lá onde ele estava escravo não fugia. Mas eu vi falar que nos outros lugares
fugiam. Fugiam de noite. Quando o patrão procurava, cadê? Onde estava? Estava na
outra fazenda. Alguém ia procurar, ia buscar, trazia e tacava na forca. (Isabel
Fabiano André, SP, 93 anos, 18/10/1987)
***
Tinha um fazendeiro aqui com nome de... da família Pereira. E esse, ele tinha
um escravo na família. Esse é o causo da escravidão, um escravo na família, um
escravo que usava fugir muito. O velho Nhozinho Pereira, eu conheci. Agora o
escravo eu não conheci. Agora esse escravo chamava Prudente e esse tal de
Prudente fugia. Fugia muito. Volta e meia... acontecia qualquer coisinha lá, ele se
aborrecia, ele fugia. Fugia para o mato. E o sinhô pegava ele, seu Pereira velho,
pegava ele, agradava ele, mas não judiava. Não chicoteava, não judiava dele. Depois
nasceu um filho que foi crescendo, ficou moço, nasceu um filho do Pereira que era o
sinhozinho Pereira. Esse, depois que o Pereira morreu, falou para o escravo:
“Prudente, você não fuja mais que eu já estou moço e o dia que você fugir, eu te
corto as orelhas”. Então ele fugiu um dia. O nhozinho Pereira cortou as duas orelhas
dele, cortou rente. Ele andava e o vento atrapalhava. Ele não escutava direito. Ficou



 O Tempo do Cativeiro 7
desortinado, meio pertubado. Esse é o causo da escravidão que um dos escravo
sofreu muito. Um escravo sem orelha é penoso, porque a orelha ajuda o vento não
atrapalhar e também o ouvido, não é? E esse coitado ficou sem, sem orelha. (José
Veloso Sobrinho, SP, 70 anos, 16/07/1987)
***
Aqui tinha uma capela numa fazenda de nome Conceição. Tem uma capela
ainda, lá nesse lugar. Ali foi matado um menino. Quando terminou o cativeiro, o
menino já levava almoço para o pai. O cativeiro tinha acabado, mas tinha gente nas
matas que não sabia que o cativeiro tinha acabado. Então ficava dentro do mato
escondido.
O menino foi passando com o almoço para o pai, porque não tratava mais de
cativeiro, já tinha criança que levava almoço, essa coisa e tal, todo mundo já estava
trabalhando à vontade, mas quem estava no mato não estava sabendo daquilo, que o
cativeiro já tinha acabado. Chamava caipora, essas pessoas que estavam escondidas
no mato, chamava caipora. Tinham muitos caiporas na mata, meu pai me falou, era o
pessoal que fugia. Para pessoa não fugir, eles usavam naquele tempo - e eu ainda
cheguei a ver também isso, isso eu cheguei a ver, tive a oportunidade de ver na casa
de um homem que chamava Zacarias, que ele também era do cativeiro, ele tinha na
casa dele guardado um tronco de pescoço. Botava no pescoço, botava uma cruz
assim em cima e tinha um gancho do lado e do outro que parecia uma cruz, que
aquilo se a pessoa entrasse no mato, agarrava no mato, então não tinha como a
pessoa andar no mato, só na estrada, em lugar limpo. Então esse menino ia passando
com o almoço, esse caipora que estava na beira do caminho pegou a moringa do
menino e matou o menino com um toco de braúna. Eu cheguei a ver esse toco de
braúna. Matou o menino com o toco de braúna para pegar comida, chamava Manoel,
esse menino. Pegou a comida e comeu. O menino ficou morto na beirada, pegaram
esse menino e enterraram. Tinha um cemitério aqui perto, tinha um cemitério, ainda
posso ver onde é que é, ainda cheguei a ver cruz naquele lugar. Cruzes de madeiras
naquele lugar de braúna. Então enterraram o menino ali. Então passou o tempo e
foram desenterrar o menino. O menino estava com o corpo molezinho. Depois
trouxeram o menino, o menino estava saindo sangue, ainda dava sangue depois d

mais de uns 10 anos, o menino estava saindo sangue. Pegaram o menino e levaram o 
menino para Roma. O padre levou o menino para Roma e ele virou santo.(Izaquiel
Inácio, Rio de Janeiro, 72 anos, 19/09/1994)


ESCRAVIDÃO E RESISTÊNCIA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A 
ESCRAVIDÃO NO MATO GROSSO SÉCULO XVIII E XIX*
VIANA, Fabiane Filgueiras**
Introdução
Este artigo se propõe a discutir sobre a escravidão no sul e norte de Mato Grosso 
no século XIX, entretanto alguns dados remetem-nos inevitavelmente ao século XVIII. Como 
sabemos, da colônia ao Império as mesmas estruturas permaneceram, dentre elas, a estrutura 
de dominação do homem sobre o homem, do branco sobre o negro. 
Pretendemos tecer aqui algumas informações acerca deste assunto, utilizando 
como base Relatórios de Província de Mato Grosso e bibliografia especializada, além de 
outras fontes. Por isso, nossa proposta é fazer uma história vista de baixo, em que
reconheceremos a existência de outros sujeitos que também ajudaram a construir nossa
história. Iremos também salientar a respeito da formação dos quilombos e de outras práticas 
de resistência, e refletiremos brevemente sobre como a reconstituição de nossa história 
regional irá influenciar na formação de uma identidade própria que respeite as várias formas 
de cultura.
História vista de baixo



Lendo o poema de Berthold Brecht , perguntas de um trabalhador que lê, 
pensamos naqueles que com esforço ajudaram a construir a história, mas que por ela foram 
ignorados, e concluímos que, realmente, como diz o poema, são tantas histórias, e tantas 
questões que ainda permanecem. Deste modo, este artigo pretende fazer uma história vista de 
baixo, baseado nas reflexões de Jim Sharpe, ao buscar valorizar as experiências das classes 
sociais menos favorecidas, das classes que vem de baixo, das classes que estão situadas à 
margem da sociedade e da historiografia; reconstruindo a história dos trabalhadores escravos
e suas vidas, suas lutas e aspirações, compreendendo que a história dessas pessoas, mesmo 
localizadas em um espaço restrito, está situada em um plano maior, que existiu em todo o país 
durante 300 anos: a escravidão de africanos no Brasil. 
Pretende-se contar a história daqueles que remaram nas canoas rio a baixo, rio 
acima, daqueles que plantaram roças, que trabalharam em minas, foram trabalhadores urbanos 
* Este trabalho foi realizado a partir das avaliações da disciplina História do Brasil III, ministrada no curso de 
História, pela Profa. Dra. Maria Celma Borges, CPTL/UFMS.
** Acadêmica do sétimo semestre do curso de História – UFMS/CPTL.529
e domésticos, daqueles que construíram quilombos, daqueles que resistiram. Estamos falando 
dos escravos de uma região que até bem pouco tempo atrás se afirmava não ter existido 
escravidão, pelo menos não de uma forma expressiva, a região de Mato Grosso e sul de Mato 
Grosso. 
Mas eles estavam lá. Como mostra um relatório de província do estado de Mato 
Grosso1



a respeito de um censo realizado na província aquele ano. Segundo o relatório, 
naquele ano foram realizados 13 casamentos entre escravos na freguesia da cidade de Cuiabá. 
Ao todo, em todo estado foram realizados 30 casamentos. Um forte indício da existência da 
família escrava. Entretanto não sabemos se a família escrava identificada acima era de tipo 
nuclear, com pai, mãe e filhos vivendo sobre o mesmo teto. Segundo Robert Slenes, nas 
uniões de casamento entre escravos, os filhos que nascessem destas uniões poderiam passar 
apenas seus primeiros anos de vida em companhia dos pais. Identificamos em Mato Grosso, 
na Sociedade de Mineração de Diamantino a existência de famílias escravas (ou pelo menos, 
só o registro das mães) nas quais os filhos não permaneceram em companhia dos pais.
No mesmo relatório, aparecem ainda outras informações, como, por exemplo, o 
número de batismos e de óbitos entre os escravos. Em Cuiabá, 30 escravos e 34 escravas 
foram batizados, seguido pela Vila de Diamantino com 38 escravos, sendo 25 homens e 13 
mulheres. No total foram 95 homens e 80 mulheres. O número de escravos homens supera o 
número de mulheres, mas não é uma diferença muito grande.
Sobre a densidade de escravos na província, é possível afirmar segundo os dados 
demográficos extraídos do artigo de Maria Machado, a respeito da população escrava de Mato 
Grosso no século XVIII, que logo no início da administração da província (desmembrada da 
capitania de São Paulo ) esta já contava com 1.175. Em 1780, três quartos dos habitantes da 
capitania eram negros ou mulatos ou mestiços. Sobre a procedência desses escravos, observa 
a autora que:
De modo amplo, através de dados esparsos, podemos concluir que, comparado com a 
população de outras capitanias, a população de escravos de Mato Grosso era em geral 
mais masculina do que feminina, pois era comprada no Rio de Janeiro, na Bahia, Minas 
Gerais e no Pará... (MACHADO, 2006, p. 10)
Conforme já mencionado, não é possível que estes escravos batizados tenham 
nascido na região, pois a baixa natalidade entre eles era fato notório, e mais, naquela época,
1


FALLA 1839. Mapa 4.530
ainda não estava em voga a lei de 1850, que proibia terminantemente o tráfico transatlântico 
de escravos. Provavelmente eles vieram direto da África para os portos do Brasil, onde os 
senhores que os compraram trouxeram-nos para a região de Mato Grosso e desse modo, assim 
que tomaram “posse” dos escravos, esses senhores, imediatamente os mandaram batizar, pois 
como segundo consta nas Ordenações Filipinas , livro V, capítulo 99 :
Mandamos que qualquer pessoa, de qualquer estado e condição que seja que escravos 
de Guiné tiver, os faça batizar e fazer cristãos, do dia que a seu poder vierem até seis 
meses, sob pena de os perder para quem os demandar. E se algum dos ditos escravos 
que passe de idade de dez anos(*) se não quiser tornar cristão, sendo por seu senhor 
querido, faça-o seu senhor saber ao prior ou cura da igreja em cuja freguesia viver, 
perante o qual fará ir o dito escravo; e se ele, sendo pelo dito prior e cura admoestado e 
requerido por seu senhor, perante testemunhas, não quiser ser batizado, não incorrerá o 
senhor em dita pena.2
Ainda sobre a densidade populacional dos escravos na província , um outro 
Relatório de Província de 1849, realizado por Joaquim Feliciano de Almeida Louzada, que 
realizou um senso da província para aquele ano, consta que a população geral da província era 
de 32.833 pessoas, sendo 10.886 escravos e 21.947 pessoas livres. Esta informação nos 
evidencia que o número da população escrava era quase a metade do contingente populacional
branco da província, fato este que nos revela a alta densidade de escravatura em uma região 
que até então, era considerada quase esquecida do resto do pais e sua população escrava era 
considerada inexpressiva. Embora, não podemos deixar de evidenciar que a economia ( 
baseada primeiramente na mineração e depois na pecuária )de Mato Grosso a época não era a 
mesma de outras regiões do país, como norte ou sudeste, e por isso a população de escravos 
em Mato Grosso era menor do que nessas mesmas áreas, mas que de maneira nenhuma pode 
ser considerada inexpressiva -nos mesmos moldes da estrutura escravista do país, a 
escravidão nesta província manteve suas especificidades. Na cidade de Cuiabá, os números
2
Ordenações Filipinas. Batismo de escravos. Ordenações Filipinas, Livro V, capítulo 99, 1603 1. E sendo os 
escravos em idade de dez anos ou de menos, em toda a maneira os façam batizar até um mês do dia que 
estiverem em posse deles; porque nestes não é necessário esperar seu consentimento. 2. E as crianças que em 
nossos reinos e senhorios nascerem das escravas que das partes de Guiné vierem, seus senhores as farão batizar 
aos tempos que os filhos das cristãs naturais do Reino se devem e costumam batizar, sob as ditas penas.» (*) 
onde consta que segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia a idade mínima para poder 
escolher a religião era de sete anos. FONTE: Silvia Hunold Lara (organização), Ordenações Filipinas, Livro V. 
São Paulo: Companhia das Letras. 1999. p. 308. Coleção Retratos do Brasil, 16.
2 Relatório do Presidente da Província de Mato Grosso, o major doutor Joaquim José de Oliveira, na abertura da 


Assembléa Legislativa Provincial em 3 de maio de 1849. Rio de Janeiro, Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e 
Comp., 1850.531
eram ainda mais evidentes, sendo que a população escrava era quase a mesma que de pessoas 
livres, 2.846 para 2.646 3
Ausências
Como dissemos anteriormente, esses sujeitos estavam lá e não só da história eles 
foram renegados, mas inclusive dos hinos dos estados nos quais ajudaram a construir. 
Apresentamos abaixo um trecho do hino de Mato Grosso do Sul. O passado sul matogrossense de escravidão tem sido rejeitado ( ou negado) por aqueles que fomentaram a 
divisão dos estados: Moldurados pelas serras/ Campos grandes: Vacaria/ Rememoram 
desbravadores,/ Heróis, tanta galhardia.
Desbravadores, heróis, bandeirantes, é deste modo e com esses nomes que a 
História tradicional tem chamado e rememorado aqueles que são considerados os pioneiros a 
adentrar em tão densa e inóspita região do „oeste‟. Agora, cabe perguntarmo-nos: Quem foi 
que realmente derrubou as matas? Quem foi que remou as canoas? Quem foi que plantou as 
roças?
Os Garcia Leal
José Garcia Leal é considerado um desses „desbravadores‟. Se instalou na 
região por volta de 1836, desenvolvendo a atividade pastoril, é reputado com um dos 
principais homens do sertão mato-grossense, seus descendentes tiveram ligação com a 
constituição de cidades ao sul de mato grosso, inclusive a cidade de Três Lagoas. Nas 
localidades desta, estava instalado um descendente seu, Protázio Gracia Leal. As histórias 
desses homens muitas vezes foram consideradas verdadeiras epopéias. Mas, de acordo com os 
estudos da historiadora Zilda Alves de Moura, Januário Garcia Leal, assim como outros 
proprietários de terra em todo o país, também possuía escravos. Zilda Moura, citando 
Campestrini afirma que José Garcia Leal “tornou-se um grande fazendeiro, possuidor de 
gado, engenhos e cativos”.4
Seus trabalhadores cuidavam do gado, faziam farinhas e outras atividades próprias 
da vida do campo. José Garcia Leal concedeu inclusive cartas de alforrias a muitos de seus 
escravos, como afirma a autora porém, as revogou anos depois, por se sentir ameaçado, já que 
os escravos receberiam a tão sonhada liberdade com a morte de seu senhor.
3 Relatório do Presidente da Província de Mato Grosso, o major doutor Joaquim José de Oliveira, na abertura da 
Assembléa Legislativa Provincial em 3 de maio de 1849. Rio de Janeiro, Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e 
Comp., 1850.
4 MOURA.2008. p.229